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Cotas raciais: direito ou preconceito?

  • Thaís Mariquito
  • 16 de nov. de 2017
  • 6 min de leitura

(Foto: Amazonaws.com)

A Lei das Cotas, sancionada em 2012, exige que toda universidade federal destine 50% de suas vagas a estudantes autodeclarados negros, pardos, indígenas, de baixa renda, com rendimento igual ou inferior a 1,5 salários mínimos per capita e que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas. As interpretações e opiniões em relação à regra, porém, são muitas.

Os defensores dessa Lei garantem que ela é uma forma de ação afirmativa, a fim de reverter o racismo histórico contra determinadas classes étnico/raciais. Algumas pessoas, porém, discordam e afirmam que a política é, na realidade, racista. Esse é o caso da estudante Virginia Rosa, que afirma que “as cotas consideram a raça como fator que determina a capacidade intelectual do indivíduo, um verdadeiro equívoco”. E completa: “acredito que qualquer tipo de separação acaba por criar uma falsa diferença entre raças que, em minha opinião, é inexiste. Todos somos iguais, independentemente da cor, e isso nos torna igualmente aptos a ingressar no ensino superior.”

Direito ou preconceito?

Foi esse pensamento de que o sistema seria, na realidade, uma forma de preconceito velado que impulsionou a defensora pública Isabela Salomão a fazer sua monografia de pós-graduação em Direito Público sobre o tema. “Eu tinha como visão inicial a ideia de que a política de cotas ia de encontro com o direito fundamental à igualdade. Mas, ao ler mais profundamente sobre o tema, conhecendo os primórdios das ações afirmativas tanto nos Estados Unidos quanto na Índia, entendi a proposta e percebi o quão necessário é para a sociedade uma política nesses moldes.”

Silvana Veríssimo, do Grupo de Mulheres Negras Nzinga Mbandi, concorda: “As cotas no Brasil são mais do que necessárias. Até 1950, a população negra era proibida de estudar nesse país e ninguém fala sobre isso. Ao comparar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da população negra e da população branca, há um disparate bem explícito. E, a partir do momento que questionam as cotas para a população negra, aí sim começa o problema. Isso traz à tona o racismo que existe no nosso país”.

Cyro Mariquito, também formado em Direito, discorda e defende que a inclusão dos negros, cuja segregação ele não nega, deve se dar através de um ensino básico de qualidade. “Ademais, entendo que existe uma distorção no ingresso às faculdades públicas, não no que concerne a questões étnicas/raciais, mas sim questões socioeconômicas. Pessoas, independentemente de sua cor, que obtiveram uma educação de baixa qualidade têm, necessariamente, mais dificuldade de ingresso nas universidades públicas, em claro prejuízo àquelas de classes mais abastadas. A distorção, em meu entendimento, deve ser corrigida, não em função da cor, mas em função da classe e histórico socioeconômico. Entendo que a criação de grupos em função de cor ou sexo me parece socialmente perniciosa porque cria polarização desnecessária. Há, noutra ponta, meios mais eficazes e socialmente menos danosos. No caso específico das universidades públicas, entendo que não deveria haver cotas, a meritocracia deveria prevalecer.”

Isabela Salomão, porém, rebate: “Como questionar a desigualdade dispensada ao negro desde o início de seu caminhar na vida, que perpassa por olhares desconfiados, bem como pela negativa reiterada de oportunidades? Como negar os deletérios efeitos da herança da escravidão, que ainda impera na exclusão social dos descendentes africanos? Esses argumentos baseiam-se, a meu ver, em um ideal igualitário absolutamente utópico. Afirmar que tais ações afirmativas reforçam o conflito racial é negar que o mesmo existe, independentemente de qualquer política pública. Se há algo de discriminatório na política de cotas é a reação daqueles que, privilegiados por se enquadrarem no conceito ultrapassado de 'homem de bem', se sentem no direito de tripudiar sobre um conceito que desconhecem e opinar de forma preconceituosa acerca de dificuldades que jamais viveram”.

(Foto: EBC)

Um longo caminho a percorrer

Mas se há algo de que todos concordam é que o sistema ainda apresenta falhas e tem muito a melhorar. “Seja quanto à falta ou má elaboração de critérios, seja no que concerne à fiscalização do cumprimento dos mesmos, muitas são as lacunas encontradas em tal ação afirmativa, o que acaba por fortalecer argumentos contrários a uma política que, se bem implantada, seria de extrema valia para a sociedade”, afirma Isabela Salomão. A estudante Júlia Sales completa: “em um país como o Brasil, onde há a miscigenação clara, é difícil julgar apenas por fenótipos. Uma pessoa com a pele negra pode ser menos negra que uma pessoa com a pele branca”.

Vanessa Silva é cientista social e negra e, quando ingressou no ensino superior, ainda não havia política de cotas pelo programa de ingresso que participou, o Programa de Ingresso Seletivo Misto (PISM), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mas, apesar de ser a favor dela, garante que, se houvesse, não o utilizaria. “Eu cumpro o requisito racial e social, mas nem passou pela minha cabeça utilizá-lo, assim como não o utilizo hoje nos concursos que presto. Não acredito que só esforço pessoal seja necessário para conseguir boas vagas. A diferença é que, no meu caso, por mil particularidades que compõem minha história de vida, acabei tendo acesso a uma educação de alto nível, mesmo sendo estudante de escola pública, já que fiz ensino médio em um instituto federal. Entendo minha não-utilização deste sistema antes como uma escolha ética, por reconhecer que tive condições privilegiadas que outros cotistas não tiveram, do que como reforço a uma retórica meritocrática vazia.”

Mas Vanessa lamenta que nem todos pensem da mesma forma. “Minha crítica se encaminha apenas à massa de cotistas que claramente não precisava concorrer por estas vagas: estudantes que não são de baixa renda, sejam eles brancos ou não. Se há alguma ineficiência no sistema é que o mesmo ainda não é capaz de fazer alguma triagem entre aqueles inseridos em condições sócio-históricas problemáticas e aqueles que estão em condições sociais privilegiadas."

Segundo dados do Ministério da Educação, o número de negros e pardos que cursam ou concluíram o ensino superior no Brasil quintuplicou entre 1997 e 2013. “Mas esse número ainda é muito pequeno comparado ao número de brancos. Então não é só cota que a gente quer. As cotas vão resolver o problema? Vão. Daqui a 20 anos começaremos a ver resultados. Mas ainda assim, se continuar só nisso, a população negra vai demorar 350 anos para equiparar seu IDH com o da população branca”, finalizou Silvana Veríssimo, afirmando que o que o país precisa é de mais políticas públicas que proporcionem, em menos tempo, a igualdade racial de fato.

(Foto: E-ideias)

As cotas nivelam por baixo?

Ao contrário do que se percebe atualmente, não foi somente a população que se dividiu em opiniões em relação ao sistema de cotas. Muitos casos ficaram conhecidos, à época da implantação, de universidades que se recusaram a adotá-lo por inúmeros motivos. A Universidade Federal do Paraná, por exemplo, foi impedida, em 2004, pelo Ministério Público do estado a adotar o sistema alegando que a prática afrontava “o princípio constitucional de isonomia e reforça práticas sociais discriminatórias”.

Em outros episódios, a própria adoção do sistema causou polêmica, como no caso da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, que passou a decidir quais estudantes teriam acesso às vagas a partir da análise de suas aparências através de fotografias enviadas por eles. O fenótipo exigido era composto por “lábios grossos, nariz chato e cabelo pixaim”, o que gerou protestos de movimentos negros. E, nessa mesma universidade, ainda houve o caso do professor de física Adriano Manoel dos Santos, que foi réu de uma ação judicial após ter dito em uma de suas aulas que a universidade deveria “nivelar por cima e não por baixo” o ensino, fazendo alusão aos alunos cotistas na sala.

Mas, mesmo com tantas resistências, dez anos após algumas universidades estaduais e federais aderirem ao sistema de cotas, o número de alunos pardos e negros que cursavam ou concluíram alguma graduação no Brasil subiu de 2,2% e 1,8%, respectivamente, para 11% e 8,8%, segundo o Ministério da Educação em levantamento de 2013.

Em estudo realizado em 2011 por dois professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), seis cursos foram analisados, todos da turma ingressante no ano de 2006. A equivalência de notas no desempenho entre cotistas e não-cotistas foi apontada, contrapondo-se aos valores do vestibular. Por exemplo, no curso de Medicina, os cotistas tiveram uma média de 50,42 pontos no vestibular, contra a média de 73,24 pontos dos não-cotistas. Em compensação, o desempenho dos cotistas durante o curso chegou a uma média de 7,76 pontos, contra 7,71 dos não-cotistas.

Fonte: “Política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico”. Tese de doutoramento de Tesesa Olinda Caminha.

Além disso, nos seis cursos avaliados, a evasão dos cotistas é sempre menor.

Fonte: “Política de cotas em universidades e inclusão social: desempenho de alunos cotistas e sua aceitação no grupo acadêmico”. Tese de doutoramento de Tesesa Olinda Caminha

Dessa forma, os números derrubaram um mito bastante perpetuado durante os primeiros anos da implantação do sistema: de que o nível do ensino cairia. E, então, o que caiu foi só uma coisa: o argumento dos preconceituosos.

 
 
 

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